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quinta-feira, 15 de maio de 2008

PERFIL

Gosto de escrever sobre o que gosto
e também sobre o que eu não gosto.
Não gosto de nunca ter escrito sobre gostos
e gosto de resolver o problema do gosto-não-gosto:

não gosto de vizinhos exceto quando preciso deles,
gosto da minha caneta e da minha lapiseira,
não gosto de artistas que se acham perfeitos,
gosto de acreditar que não existe coisa perfeita,

não gosto de comida nem de bebida muito quentes,
gosto de notar que choramos de alegria e de tristeza,
não gosto de emprestar minha caneta nem minha lapiseira,
gosto de saber que há fumaça em temperaturas extremas,

não gosto de ser egoísta e indócil ao mesmo tempo,
gosto de acompanhar cegos até quando eles queiram,
não gosto de dar meu lugar para idosos arrogantes,
gosto de ouvir walk-man e de cantar no ônibus,

não gosto de nenhum tipo de espera necessitada,
gosto de pressentir o gozo e de freiá-lo repetidas vezes,
não gosto de beber apressado, nem social e moderadamente,
gosto de conversar até o dia raiar com Cézar Ray,

não gosto de gente estranha na minha mesa,
gosto de não ter mesa e de ter todas ao mesmo tempo,
não gosto de chope que fuja da sua temperatura e tulipa ideais,
gosto de fumar charutos cubanos em datas singulares,

não gosto de ser bajulado e de tapinhas nas costas,
gosto de abraçar minha família, mulher e amigos,
não gosto de supermercados e de caixas de supermercados,
gosto de feira, de birosca, de pé-sujo, de chouriço de domingo,

não gosto de cemitério e de leitos hospitalares,
gosto de assistir ao making-off antes do show,
não gosto de paparicar meus poemas infinitos,
gosto de ser fiel ao “Ouça No Volume Máximo”,

não gosto de dias sem nuvens esperançosas,
gosto de mate bem forte com polpa de maracujá,
não gosto de almoçar nem de jantar bebendo cerveja,
gosto de ler revistas e dicionários de trás para frente,

não gosto de ser surpreendido com mudanças de planos,
gosto de ouvir sempre todos os discos do meu acervo,
não gosto de fazer, conquistar ou conhecer novos amigos,
gosto de sítios, fazendas, cachoeiras, serras e de pomares,

não gosto de filmes ou de quaisquer programas dublados,
gosto mais dos poetas e dramaturgos do que dos romancistas,
não gosto de cientistas sociais e antropólogos engajados,
gosto das ironias destiladas e do politicamente incorreto,

não gosto de obrigações pré-estabelecidas e de submissões prontas,
gosto dos não-compreendidos, dos retaliados e dos perseguidos,
não gosto daqueles que brincam e manipulam a fé das pessoas,
gosto de acender uma vela para o meu anjo da guarda de vez em quando,

não gosto de cobranças grosseiras e de sermões certinhos,
gosto de pagar a conta escondido para os amigos,
não gosto de ficar dois dias sem comer feijão,
gosto de chá preto na caneca e de torradas com requeijão,

não gosto de domingos depois do soar do meio-dia,
gosto de banana d´água, de banana ouro e de abacaxi geladinho,
não gosto de bolo de aniversário e dos parabéns robóticos,
gosto de brigadeiro, de beijinho, de cajuzinho e das bolas coloridas,

não gosto do meio-dia, das duas da tarde, das sete da noite,
gosto das cinco e meia da manhã e das folhas orvalhadas,
não gosto dos bares quando as mesas são suspensas,
gosto de sair para um outro bar e da boemia sem prazos,

não gosto de reuniões de mais de trinta minutos,
gosto do que o povo gosta e das decisões emblemáticas,
não gosto de lavar louça depois do almoço,
gosto de dar presentes sem datas marcadas,

não gosto de ser elogiado e de ser bem quisto,
gosto das verdades ao pé-de-ouvido,
não gosto de fofoca, do disse-que-disse venenoso,
gosto da roda de samba no quintal de casa,

não gosto de patrulha, de ovos no palco,
gosto de dizer tudo sem perder nada,
não gosto de janelas fechadas e de elevador,
gosto do verde, do azul, do magenta e do ocre,

não gosto da minha lucidez e do meu raciocínio lógico,
gosto de bolinho de chuva, de varanda e de saraus mágicos,
não gosto dos que acham que sabem de tudo e de todos,
gosto de libertar a arte do tronco da emoção,

não gosto do fardo pesado que os poetas carregam,
gosto de água mineral e de roupa larga,
não gosto de não saber tocar violão de sete cordas,
gosto do Rio de Janeiro, de Nova Iguaçu e da minha rua,

não gosto de falar muito e de ouvir pouco,
gosto de ser bom de cama, de trepar vultuoso,
não gosto que meus discos e livros fiquem longe de mim,
gosto de dirigir na Dutra e na Serra das Araras,

não gosto de não viver do fruto das minhas criações,
gosto de ser irmão de Cézar Ray, de Eloy e de Peregrino,
não gosto que me vejam chapando em tardes de dias úteis,
gosto das contradições, do inusitado, do bote da madrugada,

não gosto de tomar banho frio e de toalhas pequenas,
gosto de desodorante sem cheiro e de bucha vegetal,
não gosto de me levantar para falar com as pessoas,
gosto que se levantem para falar comigo e apertar a minha mão,

não gosto de puxa-sacos e de gente que não bebe álcool,
gosto de Pernambuco, de Minas Gerais e de Porto Alegre,
não gosto de viajar de ônibus, de trem e de barcos,
gosto de motocicleta, de F-1, de futebol e de tênis,

não gosto que me cobrem dinheiro que esqueci de pagar,
gosto da minha cachorrinha bagunceira e sem raça definida,
não gosto de rodeio, de música eletrônica e de boates,
gosto da beijar minhas irmãs, meus amigos e meus pais,

não gosto dessas instalações modernosas cheias de cocô,
gosto da Biblioteca Nacional e do Teatro Municipal,
não gosto de fardas, de uniformes e de cartão de ponto,
gosto de mulheres grávidas e de puxar assunto com elas,

não gosto de salas de bate-papos dos sítios eletrônicos,
gosto quando meus amigos me chamam de poeta,
não gosto de ser chamado de poeta por desconhecidos,
gosto de sair de fininho sem precisar das despedidas,

não gosto da Beija-Flor de Nilópolis e da Grande Rio,
gosto da Portela, da União da Ilha e do Império Serrano,
não gosto da pose definitiva da Fernanda Montenegro,
gosto do Neguinho da Beija-Flor, do Zeca e do Jamelão,

não gosto de definições, de julgamentos e de esteriótipos,
gosto de moinhos, de cheiro de café e de coador de pano,
gosto de cigarros fortes e de bebidas alcoólicas fortes,
não gosto de cinzeiros e de acender coisas com fósforos,

não gosto de ir sem ser formalmente convidado,
gosto dos pequenos gestos descompromissados,
não gosto de não poder ser claro e cristalino,
gosto do verbo aberto direto e diplomático.

Não gosto de amanhãs cheios de melancolia:
gosto deste agora abraçado e recheado de poesia.

NADA SERÁ COMO ANTES

A partir de ti
surgiu um outro
mundo inesperado

algo não imaginado
como se o pano tecesse
a forma do bordado.

A partir de ti
nasceu um outro
gozo alucinado

um jocoso contrapeso dormente
que fluente me eleva
ao ser exorcizado.

A partir de ti
ressuscitou um outro
ser renovado

uma nova chance
como se eu recebesse
um coração doado.

A partir de ti
notei um outro
tom afinado


um sem nenhuma toada
como se eu ouvisse
o teu silêncio lacrado.

A partir de ti
capturei um outro
modelo de olhado

um que clama
sutil e de soslaio
para que os lábios sejam penetrados.

A partir de ti
inaugurei um outro
tipo de calendário

um de domingos repetidos
servos com sabor de meles
de duplos e infinitos pecados.

sexta-feira, 14 de março de 2008

DESVIOS


E se meu Deus eu ao menos pudesse
abrir uma fresta entre as faces lisas
e densas da tua alma afiada, feito messe
proibida, que fere em vez de ser ferida,

como se já não houvesse flor a ser resgatada
ou que de teus mistérios ninguém soubesse?
Por que insistir em manter as cortinas cerradas?
Qual será o sonho que conjuras em tuas preces?

E se meu Deus eu ao menos pudesse
receber um único voto teu que contivesse
o mapa desta terra que seria a minha flecha,
no ávido desejo de encontrar a tua brecha,

e por meio dela retirar-me, enfim, do ocaso
de todo o meu decadente espólio colecionado
pelos becos, vielas e semitons da madrugada,
dentro das suas fendas movediças e disfarçadas.

E se meu Deus eu ao menos pudesse
ser ubíquo e flutuar por onde estivestes,
deitar de mansinho em teu colo silvestre
e, repleto, sublimar isto que não amanhece,

que insiste em mim para contrariar a razão
exata da fórmula e do geométrico teorema genial:
fundir o que é dois numa única matéria cabal
misturada pelo magma bombeado do coração.

O amor é a liga ligeira do níquel barato e vagabundo.
Sem ele não há a aliança que tolera todos os versos do mundo.
ALGO EM MIM


Será o poema, enfim,
o que vagueia nômade,
sem sombra e sem nome
por dentro e fora de mim,

bem camuflado entre a matéria
— viajante silencioso, esmo,
ligeiro e que até para mim mesmo
esconde a sua identidade secreta?

Será ele o agente que desbrava
minhas vísceras, meu alfabeto
e por meio desta forma alinhava
o meu ser e sina por completo,

tecendo uma longa colcha de retalhos
com meus versos fatalmente fracassados,
para que depois eu morra asfixiado
nesta mortalha sem nunca tê-lo achado?

Será ele, sutil, o que insiste em travar
longas batalhas às bordas da madrugada
entre o papel branco e a provável palavra
que nunca estará, de fato, bem colocada,

pois decerto haverá uma outra agendada
nestas hostes que são sibilinas e fantasmas,
donas de um tempo, das horas enfeitiçadas
quando se cai do cavalo e ele na gargalhada?

Será ele que lacera, que blasfema... O poema
é que leciona em minh’alma e, eterno, me algema?

Marlos Degani

Minha foto
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Participa do grupo de poesia Desmaio Públiko em Nova Iguaçu. É jornalista, escreve crônicas periódicas no sítio do Baixada Fácil www.baixadafacil.com.br e lançou de seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2007 e um CD de poemas chamado MARLOS DEGANI - ATÉ AGORA em 2009, com a sua poesia completa (édita e inédita). Lançou em set/14 seu segundo volume de poemas chamado INTERNADO no formato e-book, já disponível nas melhores virtuais. Contato: marlosdegani@gmail.com