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domingo, 26 de julho de 2009

HIATO

Todos têm os seus mistérios
E segredos guardados no peito

Todos têm pelo menos um cadeado
Que só é aberto nos confins da solidão

Todos têm vários desejos escondidos
Censurados no crivo da Dona Moral

Todos têm labirintos sem mapa
Onde a alma se perde aflita

Nunca pretendi decifrar ou entender
Tua avalanche de seguidos arrepios

Que sempre alvejou meus sentidos
Desde quando te avisto ao longe

E assim que recebo o teu abraço macio
O tempo pára feito uma lívida morte

Que permite a vida do eterno instante
Em que o teu coração bate por nós dois

E nascemos num só corpo teimoso e proibido
Neste sonho feito de segundos de infinito.

FELICIDADE

O que é a felicidade?
Uma banda que se eleva
ao passo que a outra metade
dentro de ti toda trafega

e inteira, cheia, desbrava
os dois lados da moeda
quando a coroa vira cara
e a cara um Pierrot às avessas?

O que é a felicidade?
Antídoto ou paliativo?
Mentira ou verdade?
Alma ou espírito

efêmero feito cigano
sobre nó e encruzilhada
que beija o riso e o pranto
nas tranças da madrugada?

O que é a felicidade?
Algo que queima e arde?
Algo que alivia e abre
as pálpebras da tarde

escarlate? Obra de arte
que esconde uma parte
de cruel perversidade
ou é puro o seu alarde?

O que é a felicidade?
É a razão que toda se evade
por um vento que te invade?
O que é a felicidade?

quinta-feira, 23 de julho de 2009

SIMULTÂNEOS

Enquanto escrevo, ardo — condenado à fogueira pelo poema e todo o seu clero.
Enquanto ardo, atuo — mergulhado num oceano de cinzas maior do que o deserto.
Enquanto atuo, escrevo — desafiado por esta falta de fim que nos mantêm vivos
nesta troca acordada na solidão: ele se alimenta do meu cansaço e eu do seu infinito.

Enquanto amo, sangro — ferido pelos mil estilhaços poderosíssimos do ciúme.
Enquanto sangro, sofro — tingido por uma ampla camada do seu grosso betume.
Enquanto sofro, amo — extrema-ungido sem palavras (esta sua ausência afiada
que me enterra e remete ao vazio a alma aflita que clama por você e mais nada).

quinta-feira, 16 de julho de 2009

SEM NOME

Não existe palavra que meça
a fundura do poço desta chaga
nem mesmo um grau superlativo
absoluto sintético, nenhum estilo,

nada de que se aproxime a gramática
e suas antipáticas e inevitáveis assepsias:
a palavra trepa; é o chorume da poesia,
mas não traduz o âmbar dessas lágrimas.

Não existe palavra que faça
o retrato falado desta carrasca
(nada mais que o nada se revelaria
— não há imagem na fotografia.)

torturadora, dona, devastador ingresso;
expõe num desfile a nudez das minhas dores
quando por meio de cada gemido confesso
o cinza dos dias: só você reina no reino das cores.

O poeta procura a palavra, esta que não ecoa ou convoca
a insensatez e o azeviche do ar que a sua ausência provoca.

domingo, 12 de julho de 2009

SEM VOCÊ

Sem você por perto o tempo acorda
e invade senhorio os pedaços do dia;
transforma o que é segundo numa harpia
que me assombra, me acua e me devora

bicada a bicada, poro a poro, veia a veia
quando o corpo é lentamente carcomido
feito o cadáver pelos vermes escurecidos
ou a alma que no alto do inferno corcoveia.

Sem você ao alcance caio na teia da madrugada
que muitos compreendem luz, festiva e dilacerada
mas para a pena que usucarpe nos meus dedos roídos
representa a duríssima resposta: o poema é do infinito

e locador da seara que não se veste em nenhuma medida
pois é irmão maior do presente, vítima do mesmo apuro
de ter a sua inexistência negada pelo homem, esta teimosia
que ignora a sua órbita ubíqua entre o passado e o futuro.

Sem você nas cercanias um amplo anti-milagre é operado
feito se eu esfregasse no deserto uma lâmpada ao contrário
e dela surgisse o olor do enxofre e depois o próprio diabo
que realiza os meus pesadelos e assassina o que foi sonhado

nas noites em que seus braços mágicos inteiros me acoplavam
e cada pelo, um punhal que se acomodava nesta cela sem grades
onde éramos tão um e tão leves, tão entrelaçados e tão afeitos
e tudo o que um deu para o outro foi puro amor (quase perfeito).

Sem você como referência fico perdido, desconheço o sul, o norte
e a solidão sussurra meu último verso: a vida é pior do que a morte.

terça-feira, 7 de julho de 2009

MUDANÇA DE ESTAÇÃO

Tuas mãos dulcíssimas hospedam
a maciez inconstante e tenra das nuvens:
ora fogos ora brasas ora colas ora éteres
ora cegas espátulas ora afiados gumes.

Tuas mãos generosas oferecem
uma longa viagem para o paraíso:
são donas do meu corpo, do meu juízo
e das ondas que me sobem e que me descem.

Tuas mãos completas promulgam
a paz, extinguem as armas e as guerras:
assinam em segredo o decreto que encerra
todas as dores que os homens divulgam.

Tuas mãos não são mãos apenas e sim aladas esferas
que me retiram do inverno e me pousam na primavera.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

AGONIA

Vai bem longe o dia
do tudo que existia.

Vai bem morna a tarde
e só me resta uma parte.

Vai bem breu a noite:
tua ausência, meu açoite.

VISGO

De nada adianta a velha promessa,
a voz falsamente firme e precisa,
o martelo batido feito armadilha,
a negação dessa dor que me engessa,

se tudo que faço sem você se torna desfeito
e o seu “S” ainda mora no cordão do meu peito.

CONVERSA DE VERSO

Sou o verso. Um ábaco cujas peças
são portas ora fechadas ora abertas,
signos soltos, promíscuos e libertinos,
espaço onde habitam os limites infinitos.

Trafego na vertente doentia do poeta,
faço as cartas, cacifo, distribuo o jogo,
arruíno com o pobre tolo pouco a pouco:
acendo o refletor e depois cobro a vela.

Venho da improvável e diabólica interseção
entre o egocentrismo absoluto e a ingratidão
— o umbigo que somente enxerga o que é seu
e as costas hasteadas feito bandeiras de adeus.

Não há remorso, arrependimento ou piedade
nas minhas hostes de falsíssimas promessas,
pois blefo com o poeta e juro uma verdade
mentirosa, mas é esta mesma que o interessa.

Sou o pastor da ilusão, o grão-mestre da miragem.
Servir para tudo e em todos é a minha camuflagem.
Brinco com as coisas mais perigosas dessa vida:
vaidade, orgulho, ego, frustração, estima e cobiça.

Guardo as mil chaves de um vasto paiol de maquiagens;
transformo perfídia em palmas e abóboras em carruagens.
Doso com precisão os pés do voo e no seu lugar mais alto
solto as máscaras sem ar e anuncio de supetão o assalto.

Ajo com o poeta da mesma forma que o álcool no alcoolista:
sorrateiro, despretensiosamente pretensioso, cruel e imperialista.
Apresento sabores inéditos e aparento ser um prazer submisso
enquanto a arrogância constrói as cercas do seu mundo finito.

Sou o verso. Porta-voz e estandarte daquilo que não existe:
vilíssimo veneno que não mata aquele que me entende livre.

Marlos Degani

Minha foto
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Participa do grupo de poesia Desmaio Públiko em Nova Iguaçu. É jornalista, escreve crônicas periódicas no sítio do Baixada Fácil www.baixadafacil.com.br e lançou de seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2007 e um CD de poemas chamado MARLOS DEGANI - ATÉ AGORA em 2009, com a sua poesia completa (édita e inédita). Lançou em set/14 seu segundo volume de poemas chamado INTERNADO no formato e-book, já disponível nas melhores virtuais. Contato: marlosdegani@gmail.com