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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

DESAFIO V

A provável palavra não apareceu
mas enviou esta lágrima na tela
(tremeu a mão e a pena que medra
pois seu castigo é igual ao de Prometeu:

esvaziar-se à sede oceânica de um deus
que não milagreia e nenhum filho ofereceu
para perdoar as longas folhas encharcadas
do suor solto na masmorra das madrugadas).

O poeta finge que não liga, cria neologismos;
já sabe perambular à beira do próprio abismo.

DESAFIO IV

Expor essas vísceras ao vivo,
fazer do teclado uma chaira
e do fonema uma navalha
que toda já se esvai, sem fio,

sugada pelo precipício do poema
(pontiagudo, escuro, surdo, frio)
onde aquela dor que te queima
bate o martelo e ateia o barril.

Ainda que mergulhado nas fuligens do nada,
o poeta se reúne nos corais da provável palavra.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

DESAFIO III

A hesitação partiu sem decreto
e já estou aqui, neste plasma,
a desafiar o todo cru do verso
e a sua ardilosíssima cilada

que fisga o poeta pelo umbigo,
o repuxa rápido ao falso alto
do seu cordão - que é infinito
e o faz o tolo herói do assalto.

Só quero saber de fato o quanto resta
para o vento vir e bater na minha testa.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

METADES - CANTO I

Há um amor em mim tão completo
que na tua ausência sonega
o ar e o torna rarefeito
— e me sufoco pelo avesso.

Há um ódio em mim tão intenso
que cala a fugidia razão
quando me embriago de veneno
e livro o ciúme da prisão.

Não construo cercas... O poema
que persigo desdenha do mapa,
permite pernoites da diferença:
amor e ódio na mesma casa.

Te amo e moro na tua toca.
Te odeio e abro a minha cova.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

ABSTRAÇÕES

Vejo formas de rostos nas paredes descascadas,

nas falhas dos chapiscos de muros incompletos,

nos vestígios furta-cores das demãos do passado

e na sujeira da vida impressa na tinta asséptica.


Ouço vozes e desconheço de onde elas partem

e nem sei se de fato partem; se estas ocas audições

(que se tornam tensas diante destes misteriosos apartes)

são recados imaginados ou gemidos dos meus porões.


Degusto o vento; quero-o, anseio-o a cada intervalo,

seja feito brisa morna que amacia a cama do dia,

seja feito lâmina gélida que deita a saudade e fatia

o abismo em degraus e a morte em desejo adiado.


Exalam invasoras ao redor das minhas narinas

o chorume e a fragrância bandida das esquinas,

uma a uma, olor a olor, nota crua a crua nota

que passam ligeiras, enquanto a alma se transporta.


Pego o verso somente quando o caço feito a um rato

e ele morde, me lança em chamas, não quer ser escravo

e concreto armado de fogo natimorto: algo fracassado

que já partiu no ocaso, mas deixou seu anzol armado.


O poeta tem inexatos treze pedaços soltos na curva:

cinco sentidos, sete pecados e um poema em fuga.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

DESAFIO II

Mais uma vez aqui, diretamente
feito se a tela fosse guardanapo,
feito se o boteco fosse meu quarto
e o cigarro uma amarga aguardente

que posta a coragem e sela o chamado:
conheça esta carne versada e quente
que por você rebaixa todo o passado
e liberta a ânsia do futuro e o mel do presente.

Voa que o poeta aterrissa manso o seu alfabeto alado.
Pousa: faça do meu corpo o seu hangar. O seu pecado.

REBENTOS

Quando já não basta
o enredo acelerado
de bocas famintas,
ávidas da macia carne.

Quando já não há freio
do corpo noutro corpo,
agora um mesmo mar
― gênese do infinito.

Quando não há decibéis
para o silêncio ofegante,
rarefeito, deste límpido cume
de duas mortes satisfeitas.

Quando o mundo ressuscitado
cabe na pausa do beijo mútuo,
penúltimo, levitado, fundido e mordiscado:
almas soldadas em pleno fogo farto.

Quando o nosso gozo se traduz num nosso parto.

Marlos Degani

Minha foto
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Participa do grupo de poesia Desmaio Públiko em Nova Iguaçu. É jornalista, escreve crônicas periódicas no sítio do Baixada Fácil www.baixadafacil.com.br e lançou de seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2007 e um CD de poemas chamado MARLOS DEGANI - ATÉ AGORA em 2009, com a sua poesia completa (édita e inédita). Lançou em set/14 seu segundo volume de poemas chamado INTERNADO no formato e-book, já disponível nas melhores virtuais. Contato: marlosdegani@gmail.com