Páginas

segunda-feira, 18 de maio de 2009

ECOS DESTEMIDOS

Soube da tua cadelice,
da calçada que fizeste cama.
Coragem, fúria ou sandice,
aventura, ironia ou drama

que me puseram assombrado
pelos ecos dos teus sussurros
(silencioso solfejo reverberado
nos vazios do meu peito escuro).

Invadido pela força da tua capela
— insistente fantasma que eleva
a minha temperatura e revela
uma subversiva erupção interna

contida entre grossas algemas de gritos,
abafada em fronhas de versos falidos,
nas expelidas correntezas solitárias
que fingem te trazer e mais nada —,

passo, então, a me perguntar, perplexo:
será possível que todos os reflexos
da tua voz se alojem feito gemidos
feito se eu fosse por eles escolhido?

Será que tuas onomatopéias ungidas
ao sabor daquelas públicas lambidas
entre o teu cachorro e a tua vagina
pescaram o meu desejo feito uma isca?

Como, afinal, escapar deste cruel calor insano
se teu corpo e teus uivos são o que quero tanto?

domingo, 10 de maio de 2009

MEL & FEL

Tua boca é abismo doce,
suicídio almiscarado,
um néctar qual fosse
a sobremesa do pecado

sorvido por deus e pelo diabo.

Tua ausência é poderosa ruína,
tortura aprisionada,
um breu que veloz assassina
o sol e irriga a pele orvalhada

que é só saudade, esta navalha.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

UTOPIA

Quem sabe talvez um dia
eu não desista dessa vida
de procurar insano o rastro
do que sempre está camuflado

no meio do papel ou do teclado,
por detrás das máscaras dos homens,
nos becos, nos falsos horizontes,
fundido entre a alvorada e o ocaso?

Quem sabe talvez um dia
o poema decrete a anistia
e perdoe todas as cegas tentativas,
estanque o sangue das feridas,

desarme todas as armadilhas,
faça provas das pistas,
aborte a intenção suicida
dos soníferos e da nicotina?

Quem sabe talvez um dia
tudo o que eu diga seja só poesia?

TROVÕES

Um trovão urra lá fora
como se solidário fosse
às erupções desse meu agora
― o mesmo agora de ontem,

o de deserto em deserto,
o de lamento em lamento,
preso na forca dos versos
contaminados pelo momento.

Será ele então que estremece
os vidros molhados das janelas
ou serão as folhas velhas e amarelas
do meu inverno ― e ninguém me aquece ―

povoado de poemas qual fossem esqueletos
que sussurram trincados por uma catequese
veloz que os libertem deste escuro desassossego
na improvável mágica do milagre e da prece?

Um trovão urra lá fora neste eco onde me escoro.
Será ele eu mesmo que me desisto e me devoro?

PERÍMETROS

Persigo o poema — exato exaspero — mesmo quando adormeço
(nesta caçada pantanosa, espessa, sem medalha e sem vantagem
já que o alvo é inatingível, holográfico, uma ardilosíssima miragem
nômade, efêmera, insistente: algo desprovido de fim ou de começo

e que advoga veemente sobre a exeqüibilidade desta tese que o eleva
para uma dimensão ignorada pelos poetas, onde não há o que se encerra).
Por que resistir contra a força dessa garra que te prende na veia da floresta,
quando é a mesma e única que te resgata do poço e que depois te liberta?

Por que fixar cercas e limitar a lonjura da pena à fundura do umbigo,
se podemos mergulhar na via impossível do verso largo e de seu infinito?

LIMITES

O verso que faço e desfaço, mexo e remexo,
não é a asa-delta silenciosa que me eleva
às doces paisagens dos postais, dos contextos
epidérmicos de belezas efêmeras que trafegam

na boca de risos e na pena do felicíssimo poeta
que descobriu poder desfilar seus estandartes
pois crê possuir a rédea do verso e que projeta
soberanos galopes repletos das suas verdades.

O verso que xingo e adulo, amasso e passo,
não é a moeda corrente que compra uma dor
(ou um deslumbramento fortuito do acaso)
para de vez enterrá-la neste seu alegórico labor

sem suor, refletido sob luzes de pouca bateria
de um palco pretensioso dos aplausos camaradas
e dos elogios que inflam a bolha desta jornada
quando transforma o umbigo em formidável poesia.

O verso que trago e rechaço, cheiro e escarro,
não é a droga proibida que, rainha, me absolve
da realidade, do fato ou que eufórica remove
a pedra do caminho, o pus, e forja um atalho

milagroso, este que não abrevia a erosão das fendas
abertas e sem pontes, onde aquele pulo não pode
evitar o olor sulfuroso, ácido e cortante do poema
— um cão raivoso inexistente, mas que morde forte.

O verso que caço teimoso é o mesmo que depois me encarcera:
não sei bem se o poema me começa ou se é ele quem me encerra.

ESTRANHAMENTO

Flagro-me poeta: imerso no blecaute
silenciosíssimo da madrugada
(ringue de sangrentas rinhas da palavra,
onde quem tomba é o fingidor, Mandrake

fracassado da cartola vazia
sem ilusionismo ou despiste
pois o poema é negação, antimagia
alquímica, a majestade do que não existe).

O susto persiste feito o frio da coxia
e acompanha o poeta nesta inglória
busca sem alvo, além da utopia

cega, vil, egoísta e melancólica
do homem e da sua chaga aberta: ferida
que não entende o fim como partida.

ESMO

Cerco a noite
e suas sombras
ausentes, camufladas.

Cerco a noite
e assim abafo
o gemido em sua madrugada.

Cerco a noite
e não sei o que me aguarda:
pistas de um poema ou ciladas?

Então ― cerco a noite ― insisto
em naus a pique, neste desabrigo
feito se fosse um náufrago distraído.

DO PÓ AO POEMA

Sobre Soneto I.114 de Bruno Tolentino em “A imitação do amanhecer”.



Se cruzei os quase quarenta e as seis
sugando montes atrás de montes; se me seguro
só ao canudo úmido e escuro
como Teseu ao novelo; se me albergo de vez
na camuflagem do poema, ao sabor da tez,
e ainda sim o persigo trepado no alto do muro
e faço dele o alvo, ou o meu salário do mês;
se largo tudo enfim e borro a tinta num urro
entre o cansaço, o pó e a maquete perdida,
será talvez por isso mesmo: porque creio
que nada vai passar, pois que o verso é armadilha,
e se não consegue abrir o amém ao meio,
não há de salvar-me! O poema... Essa trilha
fantasma que me sangra: uma adaga no meu peito.

DESERTO

Perdido e cego dentro de mim
na bagunça vermelha e esma
das minhas veias que bombeiam
hipertensas meus versos de festim

que não matam a sede do poema
nem tampouco sopram o clarim
desta guerra que é muda e sem fim
pois pertence ao poeta esse problema

cuja solução lhe escapole definitiva
quando ignora o fato de que sua vitória
reside na caça infinda e no fel da derrota
que o qualifica a enfrentar outra armadilha

desenhada por este que risca, mas não existe,
inserido naquela dimensão vizinha dos reflexos
onde a ilusão toma a forma invertida dos nexos
e funda um mundo viciante, insatisfeito e triste.

Perdido e cego dentro de mim:
o poeta é demônio ou serafim?

Marlos Degani

Minha foto
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Participa do grupo de poesia Desmaio Públiko em Nova Iguaçu. É jornalista, escreve crônicas periódicas no sítio do Baixada Fácil www.baixadafacil.com.br e lançou de seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2007 e um CD de poemas chamado MARLOS DEGANI - ATÉ AGORA em 2009, com a sua poesia completa (édita e inédita). Lançou em set/14 seu segundo volume de poemas chamado INTERNADO no formato e-book, já disponível nas melhores virtuais. Contato: marlosdegani@gmail.com