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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

DESAFIO V

A provável palavra não apareceu
mas enviou esta lágrima na tela
(tremeu a mão e a pena que medra
pois seu castigo é igual ao de Prometeu:

esvaziar-se à sede oceânica de um deus
que não milagreia e nenhum filho ofereceu
para perdoar as longas folhas encharcadas
do suor solto na masmorra das madrugadas).

O poeta finge que não liga, cria neologismos;
já sabe perambular à beira do próprio abismo.

DESAFIO IV

Expor essas vísceras ao vivo,
fazer do teclado uma chaira
e do fonema uma navalha
que toda já se esvai, sem fio,

sugada pelo precipício do poema
(pontiagudo, escuro, surdo, frio)
onde aquela dor que te queima
bate o martelo e ateia o barril.

Ainda que mergulhado nas fuligens do nada,
o poeta se reúne nos corais da provável palavra.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

DESAFIO III

A hesitação partiu sem decreto
e já estou aqui, neste plasma,
a desafiar o todo cru do verso
e a sua ardilosíssima cilada

que fisga o poeta pelo umbigo,
o repuxa rápido ao falso alto
do seu cordão - que é infinito
e o faz o tolo herói do assalto.

Só quero saber de fato o quanto resta
para o vento vir e bater na minha testa.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

METADES - CANTO I

Há um amor em mim tão completo
que na tua ausência sonega
o ar e o torna rarefeito
— e me sufoco pelo avesso.

Há um ódio em mim tão intenso
que cala a fugidia razão
quando me embriago de veneno
e livro o ciúme da prisão.

Não construo cercas... O poema
que persigo desdenha do mapa,
permite pernoites da diferença:
amor e ódio na mesma casa.

Te amo e moro na tua toca.
Te odeio e abro a minha cova.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

ABSTRAÇÕES

Vejo formas de rostos nas paredes descascadas,

nas falhas dos chapiscos de muros incompletos,

nos vestígios furta-cores das demãos do passado

e na sujeira da vida impressa na tinta asséptica.


Ouço vozes e desconheço de onde elas partem

e nem sei se de fato partem; se estas ocas audições

(que se tornam tensas diante destes misteriosos apartes)

são recados imaginados ou gemidos dos meus porões.


Degusto o vento; quero-o, anseio-o a cada intervalo,

seja feito brisa morna que amacia a cama do dia,

seja feito lâmina gélida que deita a saudade e fatia

o abismo em degraus e a morte em desejo adiado.


Exalam invasoras ao redor das minhas narinas

o chorume e a fragrância bandida das esquinas,

uma a uma, olor a olor, nota crua a crua nota

que passam ligeiras, enquanto a alma se transporta.


Pego o verso somente quando o caço feito a um rato

e ele morde, me lança em chamas, não quer ser escravo

e concreto armado de fogo natimorto: algo fracassado

que já partiu no ocaso, mas deixou seu anzol armado.


O poeta tem inexatos treze pedaços soltos na curva:

cinco sentidos, sete pecados e um poema em fuga.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

DESAFIO II

Mais uma vez aqui, diretamente
feito se a tela fosse guardanapo,
feito se o boteco fosse meu quarto
e o cigarro uma amarga aguardente

que posta a coragem e sela o chamado:
conheça esta carne versada e quente
que por você rebaixa todo o passado
e liberta a ânsia do futuro e o mel do presente.

Voa que o poeta aterrissa manso o seu alfabeto alado.
Pousa: faça do meu corpo o seu hangar. O seu pecado.

REBENTOS

Quando já não basta
o enredo acelerado
de bocas famintas,
ávidas da macia carne.

Quando já não há freio
do corpo noutro corpo,
agora um mesmo mar
― gênese do infinito.

Quando não há decibéis
para o silêncio ofegante,
rarefeito, deste límpido cume
de duas mortes satisfeitas.

Quando o mundo ressuscitado
cabe na pausa do beijo mútuo,
penúltimo, levitado, fundido e mordiscado:
almas soldadas em pleno fogo farto.

Quando o nosso gozo se traduz num nosso parto.

domingo, 29 de novembro de 2009

DESAFIO

Escrever diretamente na tela
do Desmaio alguns versos,
juntar as peças estilhaçadas
em pó, em punhal, em navalhas

que me cortam a carne suada,
fria, pálida, só, frêmita e tatuada
pelo nanquim que não encontrou
a sua casa: o poema o derrotou.

O poeta não crê em nenhuma verdade;
exceto a do poema: uma vela na claridade.

ESCONDERIJOS

Cansei de gritar
por ti em mudas janelas.

Cansei de sonhar
a ver-te nua sem querelas.

Cansei de respirar
teu ar pelas tabelas.

Cansei de naufragar
a navegar-te pelas quimeras.

Cansei de imaginar
como seria a nossa guerra:

eu um todo exército pontiagudo
que derrotaria os mil nãos do teu escudo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

SEM TÍTULO

Assim que te vi pela primeira vez
as imagens que guardo e carrego,
os atalhos por onde trafego,
os pelos esmos dessa minha tez
e meus olhos zonzos e perplexos
aprenderam por meio da mudez:
cale o corpo — é da alma o alfabeto;
e do vento o sopro da insensatez.
Naquele dia um estranhamento
voraz tomou posse do pensamento
quando tudo perdeu o sentido
(ilusão de se poder ter o infinito).
Fizeste do belo um escravo
da tua tensa mescla: fada e pecado.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ENTRE NÓS

Não deixemos desatar os nós de nós

dois; não afrouxemos os laços

erguidos em agridoces bordados

de dores distintas que se fecharam sócias

e ligadas livremente pelos polos

que antes as mantinham afastadas

quando, escurecidas, ignoravam

o mútuo desejo que une os opostos.

Não entreguemos o segredo do cofre

à ânsia nefasta da harpia

camuflada nas penumbras do dia

e na inveja que transborda de seu copo:

guardemos dentro da gente, alados,

este amor que nos fez abalroados.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

NOVOS ARES

Desde quando meus olhos te fitaram
uma mágica neles se instalou
o que era ocaso virou alvorada
e toda a ferida cicatrizou.
Desde quando meus olhos te abordaram
um imenso sol no meu céu se abriu
o que era soluço virou gargalhada
e a tristeza, de mala e cuia, partiu.
Desde quando meus olhos te furtaram
um outro mundo em mim se formou
o que era córrego virou praia
e todo o sal do universo me temperou.
Desde quando teu abraço me envolveu
fiz de mim mesmo o meu próprio apogeu.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

SEM FIM

Esse teu jeito
de mal-amada
desafia meus poros,
todos, um a um,
pêlo a pêlo.

Tua marquinha de praia,
teus seios pequenos,
teu tudo pequeno
se agiganta em mim
feito tua alvura de marfim.

Eu te poria de quatro,
de supetão morderia
tuas bundas, desceria aos pés,
mergulharia às ilhargas. Não pararia.
Te poria do avesso e te chamaria

de puta, de cachorrinha, enrolaria
meus dedos nos teus cabelos (te puxaria)
e, de perto, navegaria na tua língua
até o ar se extinguir em quero assim,
em venha aqui caralho, em goze em mim!

Depois do infinito, te acordaria
em lambidas na tua vagina, profundas,
passaria pela tua divisa, teu ânus
cor-de-rosa, fechadinho, e, frenético,
subiria para sugar todo o teu gozo inédito,

colheria teus urros, sangraria sobre
tuas unhas cravadas no meu dorso,
te chamaria de única, molharia teu lençol
arrumadinho, despertaria os vizinhos
atordoados, debruçados nesta manhã alvissareira.

Te roubaria uns beijos,
reiniciaria o que nunca foi fim;
roubaria outros beijos,
outros escondidos segredos
e te ressuscitaria, de novo, para mim.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

APRENDIZ

Eu sou um eu que quer ser ele mesmo

provar o sabor desse arbítrio

e o que há nele de doce, de infinito,

de amargo, de sonho e pesadelo;

ser este incompleto em erros e acertos

que não inveja a loa do outro, o ouro

a brilhar na retina, nem mergulha no poço

onde mora a fonte do pranto alheio.

Eu sou um eu que quer ser ele mesmo,

pois aqui nenhuma aula se cabula,

nenhuma lição, diurna ou noturna,

deixa de ser ministrada pelo tempo.

A vida que me some e me subtraia

no inexato gume da sua navalha.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Como eu queria
mudar tua palavra
para mel de rainha
liberta e nunca escrava.

Como eu queria
destrancar as defesas
girar na tua poça tesa
beber garapa de poesia.

Como eu queria
as chaves do teu coração
abri-lo à ardorosa emoção
deste amor que me renuncia.

Como eu queria
na paz nossa moradia.

Ah, como eu queria!

SEM NOME

Como se chama esta fúria que emana
que emerge meio santa meio cigana
que aumenta as garras, o calor e a força
quando me adoço com o mel da tua boca

e alago todo o teu recato, toda a tua poça
onde nos transbordamos em longos gemidos
infinitos? Que obriga que a gente se contorça
nesta cama — território feito fosse o paraíso?

Como se chama esta erosão repentina
que abre tua fenda outrora escondida
que elimina tenente os nãos do vocabulário
quando me visto com o teu suor almiscarado

e trafego éter sobre teu corpo, teus cálices
onde nos derretemos em longas soldagens
ardentes? Que decreta o fim das miragens
neste antideserto — reino dos mil oásis?

Como se chama esta coisa sem nome
esta dor às avessas que nos consome?

sábado, 1 de agosto de 2009

LEVA

Leva por favor esse seu “S” logo
leva de vez enquanto eu choro
a vida que se esvai pelos poros
lentamente: assim eu me devoro

na imensidão do vazio que ocupa
a sua ausência ampla que desnuda
o peito, esta adaga forjada na tortura
de vê-la na luz, no breu e na penumbra.

Leva tudo. Leva também o nosso amor.
Cuida dele que eu cuido da minha dor.

domingo, 26 de julho de 2009

HIATO

Todos têm os seus mistérios
E segredos guardados no peito

Todos têm pelo menos um cadeado
Que só é aberto nos confins da solidão

Todos têm vários desejos escondidos
Censurados no crivo da Dona Moral

Todos têm labirintos sem mapa
Onde a alma se perde aflita

Nunca pretendi decifrar ou entender
Tua avalanche de seguidos arrepios

Que sempre alvejou meus sentidos
Desde quando te avisto ao longe

E assim que recebo o teu abraço macio
O tempo pára feito uma lívida morte

Que permite a vida do eterno instante
Em que o teu coração bate por nós dois

E nascemos num só corpo teimoso e proibido
Neste sonho feito de segundos de infinito.

FELICIDADE

O que é a felicidade?
Uma banda que se eleva
ao passo que a outra metade
dentro de ti toda trafega

e inteira, cheia, desbrava
os dois lados da moeda
quando a coroa vira cara
e a cara um Pierrot às avessas?

O que é a felicidade?
Antídoto ou paliativo?
Mentira ou verdade?
Alma ou espírito

efêmero feito cigano
sobre nó e encruzilhada
que beija o riso e o pranto
nas tranças da madrugada?

O que é a felicidade?
Algo que queima e arde?
Algo que alivia e abre
as pálpebras da tarde

escarlate? Obra de arte
que esconde uma parte
de cruel perversidade
ou é puro o seu alarde?

O que é a felicidade?
É a razão que toda se evade
por um vento que te invade?
O que é a felicidade?

quinta-feira, 23 de julho de 2009

SIMULTÂNEOS

Enquanto escrevo, ardo — condenado à fogueira pelo poema e todo o seu clero.
Enquanto ardo, atuo — mergulhado num oceano de cinzas maior do que o deserto.
Enquanto atuo, escrevo — desafiado por esta falta de fim que nos mantêm vivos
nesta troca acordada na solidão: ele se alimenta do meu cansaço e eu do seu infinito.

Enquanto amo, sangro — ferido pelos mil estilhaços poderosíssimos do ciúme.
Enquanto sangro, sofro — tingido por uma ampla camada do seu grosso betume.
Enquanto sofro, amo — extrema-ungido sem palavras (esta sua ausência afiada
que me enterra e remete ao vazio a alma aflita que clama por você e mais nada).

quinta-feira, 16 de julho de 2009

SEM NOME

Não existe palavra que meça
a fundura do poço desta chaga
nem mesmo um grau superlativo
absoluto sintético, nenhum estilo,

nada de que se aproxime a gramática
e suas antipáticas e inevitáveis assepsias:
a palavra trepa; é o chorume da poesia,
mas não traduz o âmbar dessas lágrimas.

Não existe palavra que faça
o retrato falado desta carrasca
(nada mais que o nada se revelaria
— não há imagem na fotografia.)

torturadora, dona, devastador ingresso;
expõe num desfile a nudez das minhas dores
quando por meio de cada gemido confesso
o cinza dos dias: só você reina no reino das cores.

O poeta procura a palavra, esta que não ecoa ou convoca
a insensatez e o azeviche do ar que a sua ausência provoca.

domingo, 12 de julho de 2009

SEM VOCÊ

Sem você por perto o tempo acorda
e invade senhorio os pedaços do dia;
transforma o que é segundo numa harpia
que me assombra, me acua e me devora

bicada a bicada, poro a poro, veia a veia
quando o corpo é lentamente carcomido
feito o cadáver pelos vermes escurecidos
ou a alma que no alto do inferno corcoveia.

Sem você ao alcance caio na teia da madrugada
que muitos compreendem luz, festiva e dilacerada
mas para a pena que usucarpe nos meus dedos roídos
representa a duríssima resposta: o poema é do infinito

e locador da seara que não se veste em nenhuma medida
pois é irmão maior do presente, vítima do mesmo apuro
de ter a sua inexistência negada pelo homem, esta teimosia
que ignora a sua órbita ubíqua entre o passado e o futuro.

Sem você nas cercanias um amplo anti-milagre é operado
feito se eu esfregasse no deserto uma lâmpada ao contrário
e dela surgisse o olor do enxofre e depois o próprio diabo
que realiza os meus pesadelos e assassina o que foi sonhado

nas noites em que seus braços mágicos inteiros me acoplavam
e cada pelo, um punhal que se acomodava nesta cela sem grades
onde éramos tão um e tão leves, tão entrelaçados e tão afeitos
e tudo o que um deu para o outro foi puro amor (quase perfeito).

Sem você como referência fico perdido, desconheço o sul, o norte
e a solidão sussurra meu último verso: a vida é pior do que a morte.

terça-feira, 7 de julho de 2009

MUDANÇA DE ESTAÇÃO

Tuas mãos dulcíssimas hospedam
a maciez inconstante e tenra das nuvens:
ora fogos ora brasas ora colas ora éteres
ora cegas espátulas ora afiados gumes.

Tuas mãos generosas oferecem
uma longa viagem para o paraíso:
são donas do meu corpo, do meu juízo
e das ondas que me sobem e que me descem.

Tuas mãos completas promulgam
a paz, extinguem as armas e as guerras:
assinam em segredo o decreto que encerra
todas as dores que os homens divulgam.

Tuas mãos não são mãos apenas e sim aladas esferas
que me retiram do inverno e me pousam na primavera.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

AGONIA

Vai bem longe o dia
do tudo que existia.

Vai bem morna a tarde
e só me resta uma parte.

Vai bem breu a noite:
tua ausência, meu açoite.

VISGO

De nada adianta a velha promessa,
a voz falsamente firme e precisa,
o martelo batido feito armadilha,
a negação dessa dor que me engessa,

se tudo que faço sem você se torna desfeito
e o seu “S” ainda mora no cordão do meu peito.

CONVERSA DE VERSO

Sou o verso. Um ábaco cujas peças
são portas ora fechadas ora abertas,
signos soltos, promíscuos e libertinos,
espaço onde habitam os limites infinitos.

Trafego na vertente doentia do poeta,
faço as cartas, cacifo, distribuo o jogo,
arruíno com o pobre tolo pouco a pouco:
acendo o refletor e depois cobro a vela.

Venho da improvável e diabólica interseção
entre o egocentrismo absoluto e a ingratidão
— o umbigo que somente enxerga o que é seu
e as costas hasteadas feito bandeiras de adeus.

Não há remorso, arrependimento ou piedade
nas minhas hostes de falsíssimas promessas,
pois blefo com o poeta e juro uma verdade
mentirosa, mas é esta mesma que o interessa.

Sou o pastor da ilusão, o grão-mestre da miragem.
Servir para tudo e em todos é a minha camuflagem.
Brinco com as coisas mais perigosas dessa vida:
vaidade, orgulho, ego, frustração, estima e cobiça.

Guardo as mil chaves de um vasto paiol de maquiagens;
transformo perfídia em palmas e abóboras em carruagens.
Doso com precisão os pés do voo e no seu lugar mais alto
solto as máscaras sem ar e anuncio de supetão o assalto.

Ajo com o poeta da mesma forma que o álcool no alcoolista:
sorrateiro, despretensiosamente pretensioso, cruel e imperialista.
Apresento sabores inéditos e aparento ser um prazer submisso
enquanto a arrogância constrói as cercas do seu mundo finito.

Sou o verso. Porta-voz e estandarte daquilo que não existe:
vilíssimo veneno que não mata aquele que me entende livre.

domingo, 28 de junho de 2009

ENTRELINHAS

Enquanto eu te beijava
(era todo teu o universo)
um mel de mim jorrava

inexistia o errado e o certo
só a tua língua que me guiava
aos céus: esplendor de azul aberto.

Enquanto eu te ateava
(era todo teu o tudo)
uma solda se soldava

inexistia o relativo e o absoluto
só o teu gozo que me sonegava
o tempo: fim do passado e do futuro.

Enquanto eu te reanimava
(era todo teu o líquido)
um outro ser rebentava

inexistia o início e o epílogo
só o teu riso que me congelava
de suor: doce e lívido armistício.

Enquanto eu te habitava
nem o nada mais importava.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

AAB-E-HAYAAT

A vida que deixei de saborear já não me basta;
nela nunca houve apelos de linha de chegada
tampouco a nefasta ilusão da falácia que sustenta
ser mel e finita o fel e a dízima periódica do poema.

A vida que deixei de enxergar já não me aponta
o frescor da manhã e a adstringência das brisas
que renovavam a pesada maquiagem bisonha
(paliativo ungüento contra esta dor que não termina).

A vida que deixei de tatear já não me incendeia
os pelos deitados nem enruga mais o mamilo
adormecido que outrora se vestia intumescido
mas que agora somente a saudade manuseia.

A vida que deixei de perfumar já não me entorpece
as narinas quando avisto de supetão o jasmineiro
que impregnava exuberante o meu corpo inteiro
e catapultava obstinado o seu olor feito uma catequese.

A vida que deixei de escutar já não me desconcerta
a alma paralisada que estranha aquela sublimação
de sons, tons e tocatas quando todo o peso sai do chão
e cria poderoso o vento que descerra a alfaia encoberta.

A vida dessas vidas que deixei lá fora no sereno amontoada
respira no aparelho que ainda sonha e quer e ruge e te aguarda.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

ECOS DESTEMIDOS

Soube da tua cadelice,
da calçada que fizeste cama.
Coragem, fúria ou sandice,
aventura, ironia ou drama

que me puseram assombrado
pelos ecos dos teus sussurros
(silencioso solfejo reverberado
nos vazios do meu peito escuro).

Invadido pela força da tua capela
— insistente fantasma que eleva
a minha temperatura e revela
uma subversiva erupção interna

contida entre grossas algemas de gritos,
abafada em fronhas de versos falidos,
nas expelidas correntezas solitárias
que fingem te trazer e mais nada —,

passo, então, a me perguntar, perplexo:
será possível que todos os reflexos
da tua voz se alojem feito gemidos
feito se eu fosse por eles escolhido?

Será que tuas onomatopéias ungidas
ao sabor daquelas públicas lambidas
entre o teu cachorro e a tua vagina
pescaram o meu desejo feito uma isca?

Como, afinal, escapar deste cruel calor insano
se teu corpo e teus uivos são o que quero tanto?

domingo, 10 de maio de 2009

MEL & FEL

Tua boca é abismo doce,
suicídio almiscarado,
um néctar qual fosse
a sobremesa do pecado

sorvido por deus e pelo diabo.

Tua ausência é poderosa ruína,
tortura aprisionada,
um breu que veloz assassina
o sol e irriga a pele orvalhada

que é só saudade, esta navalha.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

UTOPIA

Quem sabe talvez um dia
eu não desista dessa vida
de procurar insano o rastro
do que sempre está camuflado

no meio do papel ou do teclado,
por detrás das máscaras dos homens,
nos becos, nos falsos horizontes,
fundido entre a alvorada e o ocaso?

Quem sabe talvez um dia
o poema decrete a anistia
e perdoe todas as cegas tentativas,
estanque o sangue das feridas,

desarme todas as armadilhas,
faça provas das pistas,
aborte a intenção suicida
dos soníferos e da nicotina?

Quem sabe talvez um dia
tudo o que eu diga seja só poesia?

TROVÕES

Um trovão urra lá fora
como se solidário fosse
às erupções desse meu agora
― o mesmo agora de ontem,

o de deserto em deserto,
o de lamento em lamento,
preso na forca dos versos
contaminados pelo momento.

Será ele então que estremece
os vidros molhados das janelas
ou serão as folhas velhas e amarelas
do meu inverno ― e ninguém me aquece ―

povoado de poemas qual fossem esqueletos
que sussurram trincados por uma catequese
veloz que os libertem deste escuro desassossego
na improvável mágica do milagre e da prece?

Um trovão urra lá fora neste eco onde me escoro.
Será ele eu mesmo que me desisto e me devoro?

PERÍMETROS

Persigo o poema — exato exaspero — mesmo quando adormeço
(nesta caçada pantanosa, espessa, sem medalha e sem vantagem
já que o alvo é inatingível, holográfico, uma ardilosíssima miragem
nômade, efêmera, insistente: algo desprovido de fim ou de começo

e que advoga veemente sobre a exeqüibilidade desta tese que o eleva
para uma dimensão ignorada pelos poetas, onde não há o que se encerra).
Por que resistir contra a força dessa garra que te prende na veia da floresta,
quando é a mesma e única que te resgata do poço e que depois te liberta?

Por que fixar cercas e limitar a lonjura da pena à fundura do umbigo,
se podemos mergulhar na via impossível do verso largo e de seu infinito?

LIMITES

O verso que faço e desfaço, mexo e remexo,
não é a asa-delta silenciosa que me eleva
às doces paisagens dos postais, dos contextos
epidérmicos de belezas efêmeras que trafegam

na boca de risos e na pena do felicíssimo poeta
que descobriu poder desfilar seus estandartes
pois crê possuir a rédea do verso e que projeta
soberanos galopes repletos das suas verdades.

O verso que xingo e adulo, amasso e passo,
não é a moeda corrente que compra uma dor
(ou um deslumbramento fortuito do acaso)
para de vez enterrá-la neste seu alegórico labor

sem suor, refletido sob luzes de pouca bateria
de um palco pretensioso dos aplausos camaradas
e dos elogios que inflam a bolha desta jornada
quando transforma o umbigo em formidável poesia.

O verso que trago e rechaço, cheiro e escarro,
não é a droga proibida que, rainha, me absolve
da realidade, do fato ou que eufórica remove
a pedra do caminho, o pus, e forja um atalho

milagroso, este que não abrevia a erosão das fendas
abertas e sem pontes, onde aquele pulo não pode
evitar o olor sulfuroso, ácido e cortante do poema
— um cão raivoso inexistente, mas que morde forte.

O verso que caço teimoso é o mesmo que depois me encarcera:
não sei bem se o poema me começa ou se é ele quem me encerra.

ESTRANHAMENTO

Flagro-me poeta: imerso no blecaute
silenciosíssimo da madrugada
(ringue de sangrentas rinhas da palavra,
onde quem tomba é o fingidor, Mandrake

fracassado da cartola vazia
sem ilusionismo ou despiste
pois o poema é negação, antimagia
alquímica, a majestade do que não existe).

O susto persiste feito o frio da coxia
e acompanha o poeta nesta inglória
busca sem alvo, além da utopia

cega, vil, egoísta e melancólica
do homem e da sua chaga aberta: ferida
que não entende o fim como partida.

ESMO

Cerco a noite
e suas sombras
ausentes, camufladas.

Cerco a noite
e assim abafo
o gemido em sua madrugada.

Cerco a noite
e não sei o que me aguarda:
pistas de um poema ou ciladas?

Então ― cerco a noite ― insisto
em naus a pique, neste desabrigo
feito se fosse um náufrago distraído.

DO PÓ AO POEMA

Sobre Soneto I.114 de Bruno Tolentino em “A imitação do amanhecer”.



Se cruzei os quase quarenta e as seis
sugando montes atrás de montes; se me seguro
só ao canudo úmido e escuro
como Teseu ao novelo; se me albergo de vez
na camuflagem do poema, ao sabor da tez,
e ainda sim o persigo trepado no alto do muro
e faço dele o alvo, ou o meu salário do mês;
se largo tudo enfim e borro a tinta num urro
entre o cansaço, o pó e a maquete perdida,
será talvez por isso mesmo: porque creio
que nada vai passar, pois que o verso é armadilha,
e se não consegue abrir o amém ao meio,
não há de salvar-me! O poema... Essa trilha
fantasma que me sangra: uma adaga no meu peito.

DESERTO

Perdido e cego dentro de mim
na bagunça vermelha e esma
das minhas veias que bombeiam
hipertensas meus versos de festim

que não matam a sede do poema
nem tampouco sopram o clarim
desta guerra que é muda e sem fim
pois pertence ao poeta esse problema

cuja solução lhe escapole definitiva
quando ignora o fato de que sua vitória
reside na caça infinda e no fel da derrota
que o qualifica a enfrentar outra armadilha

desenhada por este que risca, mas não existe,
inserido naquela dimensão vizinha dos reflexos
onde a ilusão toma a forma invertida dos nexos
e funda um mundo viciante, insatisfeito e triste.

Perdido e cego dentro de mim:
o poeta é demônio ou serafim?

Marlos Degani

Minha foto
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Participa do grupo de poesia Desmaio Públiko em Nova Iguaçu. É jornalista, escreve crônicas periódicas no sítio do Baixada Fácil www.baixadafacil.com.br e lançou de seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2007 e um CD de poemas chamado MARLOS DEGANI - ATÉ AGORA em 2009, com a sua poesia completa (édita e inédita). Lançou em set/14 seu segundo volume de poemas chamado INTERNADO no formato e-book, já disponível nas melhores virtuais. Contato: marlosdegani@gmail.com