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terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

COMBUSTÃO

Haverá
na maquiagem
das certezas,
alguém que dirá
dessa saudade impossível.

Haverá
na abordagem
das lembranças,
nosso dois-em-um distante
entre alianças de alvoradas.

Haverá
na miragem
da sua alavanca,
esta vontade inflamada:
a de sermos um e mais nada.


ÁBACO

Todo dia sempre
desisto de alguma coisa:
foice, lâmina, excremento.

Todo dia sempre
nunca termino a noite sem
o grito de um arrependimento.

Todo dia sempre
meço a distância amargurada
entre o que pode ser e o nada.

Todo dia sempre
não sei bem se estou
numa curva ou numa reta:

não sei bem se é o fim
ou se é um poema que começa.



EMBATES


Cada vez que te vejo,
não domino o desejo
de evitar teus olhos acesos
— dardos certeiros no alvo dos meus medos;

algo assim: um coração ao meio,
ora parado ora em tiroteio
ou uma vez a massa e na outra o recheio
(tímido), fruto escondido no arvoredo.

Cada vez que te percebo,
mais claro é o que almejo,
mesmo que a senha do teu segredo
vibre distante do meu lugarejo.

Cada vez que teu corpo se aproxima
confundo o que é sonho com o que pode ser sina.


REFAZENDA

Sobre poema de Eucanaã Ferraz.



1

Um modo de partir:
este pacto,

sangues quentes
rumo ao acto.

2

Um modo de ficar:
esta boca

pura entrelíngüa, tensa,
e preenchida.

3

Um modo de jamais voltar:
o sonho

nave amante dele mesmo,
balé suspenso entre vôos de alvoredos.

4

Um modo de retornar:
a esperança certa

cede ao peso do tudo,
ou à outra cara descoberta.

5

Um modo de, entre
versos, despressurizar

a luta,
o poema.

6

Um modo máximo
de fazer a cama

mais larga:
a outra metade.

7

Um modo de o poeta
dar-se macio: envolvê-lo

(sem as tatuagens do destino)
ao número do estribilho.

8

Um modo de ser,
exato, mas bailarino:

toda a lacuna completa
a Velha Guarda da Portela.


LACUNAS


É sobre buscas e lacunas
que trabalho, que transpiro,
que, sem trégua, denuncio
as asas inexatas e moribundas

do tudo que se encerra como acabado
— talvez o pretenso algoz de todo o poema —
ou a inexistência do desejo alcançado
na meta, horizonte, fim, estratagema:

ele, é reta eterna, o infinito sem medida,
aquilo que, de tão trêmulo, tão inefável, orbita
entre ângulos que a matemática, só, não habita,
não ajuda, não elucida e não quantifica.

Sigo para defender este algo que é mas não é,
o que apenas se aproxima mas não comparece,
a miragem que insinua mas não aparece,
a holografia das sombras, a sudorese.

Meu verso escala os muros,
desmorona na frágil língua do paraíso;
percebe, extenuado, a rebeldia do juízo
e a triste canção dos eunucos.

Meu poema é derrota,
é bolo solado, é rota
perdida sem mapa,
ele é bússola magnetizada.

— É a negação do meu tudo,
mergulhado no meu nada.


DESAFIO PSICOGRAFADO AO POETA


Eu sou o poema, mas, creia, não existo.
Sou apenas uma holografia das sombras,
um artefato herético que passeia, e vil,
desnorteia àqueles que surfam na onda

metafórica e destruidora das vertigens
─ e exibem o falso rascunho do meu mapa
ou de qualquer outro alucinado indício
da minha passagem por alguma estrada.

Feito testemunho de assombrações e mordaças,
de orações, devoção, promessas e feitiços,
ninguém me reconhece ao certo: puro ou mestiço?
Ninguém sabe se sou sonho ou os fantasmas

que rondam escorregadios pelas madrugadas,
e, sob ocultas frestas, assombram a pena e o nanquim;
deturpam a distância da mentira dum tudo maquiado
e o amargo abismo abrupto do nada: mas todo poeta morre assim,

lentamente, tal como fenece a insana dor duma paixão arredia,
baseada na inapetente esperança de que minha porta se abra
voluptuosa e fulgurantemente — como num conto de fadas —
e desperte as vontades ególatras que florescem em frágil poesia.

Sou mesmo a necessária, realista e delirante charada,
esta invisível ameaça que, se materializada, serviria à tirania
dos nobres Doutores e das Suas teses feudais sobre a palavra
(ou às Suas concepções bem articuladas de chapas definitivas,

como se eu fosse uma peça torneada de metalurgia,
produzida em série científica e cabalmente planejada
entre os burocratas, donos das neosenzalas e das papeladas
cheias de regras, censuras, fôrmas, crivos e bruta asfixia).

Sou o que não há, o salto preso nas garras do bueiro:
só bebo um copo. Não posso ser nenhum companheiro.


TEMPO AO TEMPO


“ E então me pergunto, a sós:
por que desdenhar o outrora
se nele é que ecoa a voz
do que, no futuro, aflora? “

Ivan Junqueira in “A Sagração dos Ossos”.


O poeta quer agarrar o todo simples do poema
e o busca na pedra — como a de Sísifo — quando entende
que o seu vinho não passa duma borra demente:
o resto, o bagaço, o que irá para o lixo fatalmente,

seja no ungüento amargo do agora ou na paciente
coleção de agruras, fracassos, tapinhas e armadilhas,
no sarcasmo doentio do verso e da sua forma aparente,
na praia que se insinua continente, mas que não passa duma ilha

solitária, desértica, coisa insignificante fora de qualquer mapa,
pedaço que não vingou, onde o que é vida, se canabaliza.
Ele não estabelece o vórtice, não porque recusa esta lida,
e sim, pois, se encontra mergulhado num imenso nada,

abrupto, quando o que lhe resta é um outro lado do muro,
única vertente possível diante da solidão, do profundo urro.
Não, o louco não escapa nem de si próprio, da teia que teceu
no labirinto do Minotauro: o poeta é valente, mas não é Teseu.

A palavra mora misteriosa no vento vadio de antanho,
numa gruta sombria, atemporal e sem qualquer tamanho.

O poeta, então, assassina a hora jesuíta:
mas o próximo instante, sempre a ressuscita.

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Marlos Degani

Minha foto
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Participa do grupo de poesia Desmaio Públiko em Nova Iguaçu. É jornalista, escreve crônicas periódicas no sítio do Baixada Fácil www.baixadafacil.com.br e lançou de seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2007 e um CD de poemas chamado MARLOS DEGANI - ATÉ AGORA em 2009, com a sua poesia completa (édita e inédita). Lançou em set/14 seu segundo volume de poemas chamado INTERNADO no formato e-book, já disponível nas melhores virtuais. Contato: marlosdegani@gmail.com