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sexta-feira, 9 de abril de 2010

FRAGMENTOS

É dentro da orgia do poema
− onde a vida pulsa secreta
no mistério que a sustenta −
que minha alma presa é aberta.

A poesia não é do poeta
e nem luz para a tua caverna.

MARLOS DEGANI: «Poemas». Em: Soneto Partido. Nova Iguaçu: inédito, 2010. Fragmento final – verso 9˚ ao 14˚.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

CASTELOS

Um amor inédito
transborda aqui dentro
nesta sede de deserto
do teu beijo que invento.

quinta-feira, 25 de março de 2010

SÓ O AMOR III

O amor dói
(novelo sem linha):
ora te constrói
ora te definha.

SÓ O AMOR II

Comparar o que é incomparável
− o que viaja sem passaportes,
o que dispensa quaisquer transportes,
o que não é aurora nem ocaso,

o que te invade sem alarde,
o que confunde o sul com o norte,
o que em plena tarde te abate,
o que te deixa à própria sorte.

Se eu pudesse, compararia:
o amor é o ar que se respira.

SÓ O AMOR

Este teu amor é milagreiro
e faz de mim um cego bem no meio
do penhasco, onde cada passo
precisaria ser planejado

− ali não há nenhum intervalo,
mas visito e sou visitado
por uma coragem infinita
que me ergue e me ilumina.

Teu amor generoso ensina:
tudo começa quando termina.

terça-feira, 16 de março de 2010

INTENSIDADE

Não há luz no universo
que se compare ao brilho
deste teu olhar infinito
- esplendor do azul aberto

onde o céu está contido
e o mar elege abrigo.
Não há poema ou verso
que traduza o espectro

de uma nova saudade
que me doma e me invade.

sexta-feira, 5 de março de 2010

CIGANO

O poema não tem casa
nem encaixada palavra;
nele não há matiz ou plasma
─ só o desdém à tua lágrima:

é éter que evapora,
que dói e vai embora.

terça-feira, 2 de março de 2010

SALTOS

Virá um tempo
do fim dos fins
feito este vento
a ventar em mim.

Virá um tempo
do entendimento
natural e nascido
na força do infinito.

Virá um tempo
do discernimento
de amor costurado
na tesoura do pecado.

Virá um tempo
do doar intenso

de amor, de asas e deste exercício
de se pular no seu próprio precipício.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

REFLEXOS

Sou mó, só,
e trituro
- faço pó
e mudo

o urro
e sem dó
nego só
o futuro.

É preciso
a carne
e um grito
que abafe

o gemido
que arde
sem alarde
sem destino.

Sou espelho
de mim mesmo.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

AFORISMO DICOTÔMICO

Cada vez mais eu acho:
o poema é o meu Deus
e também o meu Diabo.

ALMIRANTE

Se uma vez eu te amasse,
uma vez só seria pouco
no mútuo nasce e renasce
entre as ancas do teu corpo,

numa viagem sem chegada,
feito aquela do poema,
a de nunca se ter a caça
ou cabaça como emblema.

E a quilha do meu navio
quer singrar o teu mar bravio.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

ULTIMATO

Nunca vi vírus mais fatais
do que estes, os do poema
(camuflagens de esquemas
sem luzes verdes nos sinais),

que convidam o ingênuo poeta
aos brilhos efêmeros duma festa
onde até o tudo parece permitido,
mas é o nada que assina o recibo.

Minha pena é a capataz da tortura
que visto avisado: dela não há fuga.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

EU TE OCEANO

Não me procure dentro de mim,
não tente me domar, me decifrar
nesta reta de começo, meio e fim
que é a tua maneira de raciocinar

o mundo, pois o teu grito é aberto,
trafega volátil no céu e no inferno,
faz do teu abraço, aula de abraçar,
faz do teu verbo, arma de perfurar.

Não me amedronte com conselhos,
não pense que não encaro o espelho;
vejo o infinito refletido no meu olhar
e a certeza: é preciso sempre buscar

a utopia cabal e completa dos sentidos;
um estágio de éter: ali não há o epílogo
intolerante, são livres todas as palavras
do jugo umbilical do poeta escravocrata.

Não me venha com essa ou com aquela:
deixa o meu vento ventar nas tuas velas.

AUTO-RETRATO

Todo de traços falidos,
de aquarelas sem cores
− de dúvidas e infinitos,
de sombras e bastidores,

tomado por este teimoso fracasso:
o de caçar o poema e o seu cabaço.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

AMARGOR

O poema é uma fratura descoberta
da cultura feroz e egoísta do poeta;
e não há mel algum nessa colméia
de favos repletos de pus e miséria.

CANDEEIRO

Essas trilhas do poema
quando flutuo a esmo
(da carne ao esqueleto,
da denúncia à sentença),

imerso neste esquema
de não ter fim nem começo;
blefa: põe fé no tabuleiro
e traveste a algema.

Não há luz no cativeiro:
é do poema o candeeiro.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

SEREIA

Ainda com cascas entre os seus duros lábios,
a morte, num raio, fecha tudo o que se abriu;
ama a vida na dor que sabe a lição do diário:
a chama chama, mas não pode beijar o pavio.

A PARTIR DO A PARTIR

De fato disposta a morte é uma viciada,
não lhe importa saber se tudo ou se nada,
mas há tanta vida no meio, no pomar lotado,
que ela morde a maçã: viver é o seu pecado.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

CRISTALINA

A morte é um velocíssimo tropeço,
não tem fim ou meio, mas começo;
não há destino de onda em sua vela:
a morte é o vidro chovido da janela.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

TOLICES

Tem gente que acha a loucura um preciosismo.
Tem gente que defende que só há a sua sensatez.
Tem gente que mescla a poesia com o umbigo.
Tem gente que pensa que o poema era uma vez.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

ALFAIAS

Ai do poeta que tem verdade
que acredita na força da pena
que pode outorgar a sentença
do verso ou da sua intimidade.

Ai do poeta, do seu trêmulo estandarte
que se desfaz na brisa rubra da tarde.

SÓ E SEM

Houve aquele tempo estranho
quando a noite só trazia pranto,

grito, cheiro de flor, soluços, espanto,
insônia, nicotina, pílula, desencanto.

E insisto vivo no visgo deste tempo de fuga
onde o meu choro ainda só chora na chuva.

sábado, 16 de janeiro de 2010

AUSÊNCIA FATAL

Minha saudade não é aquela presa ao retrovisor
que somente faz nó com o gozo do que já passou.

Mas é a tua afiada ausência que faz sangue neste agora
feito uma silenciosa guilhotina que se irrompe e me degola.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

DESAFIO X

Encerro no dez esta série cínica
que serviu apenas para o nada
pois o poema não é a palavra
lançada e não mora na ferida

do poeta imerso em seu umbigo
que se define o patrão do infinito
e faz do verso um conto de fadas
a serviço da sua próxima lágrima.

E nunca aposte nenhum centil na esperança:
o poema declina. Não tem par em sua dança.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

DESAFIO IX

A pior armadilha que se possa armar
é a que oferece, nos bordos do umbigo,
este quase irresistível e fatal batismo
de poeta: versador pronto para versar.

Somente o malandro é quem afasta
o embate direto da chama e do pavio
pois nenhum deles vence o desafio
que apenas existe porque não acaba.

Sigo fissurado e perdido no breu sem mapa
desta conectada cilada azulada de plasma.

domingo, 10 de janeiro de 2010

DESAFIO VIII

Minha teimosia insiste na farsa
de inutilmente lançar falácias
instantâneas (tecladas na tela)
nesta vil ilusão que reverbera

o eco oco, o decibel do nada,
um timbre oculto, às avessas,
que reabastece a pena cega,
esma, rombuda e sem estrada.

Espera um dia; a brincadeira acaba:
nos sete palmos úmidos da palavra.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

DESAFIO VII

Outra vez aqui fingindo-me solto
(num parto exposto de palavras
diretamente digitadas neste plasma)
a amamentar o embrião natimorto

que nenhum deus poderá salvar
pois não há substância no colostro
do improviso, da maquiagem barata
que atenua a palidez do seu rosto.

O poeta continua a brincar de poeta;
mas não esconde a dor que o atravessa.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

NA DOR

Há na dor somente um sortilégio
— que não passa pela ubiqüidade;
cada dor sabe de que jeito arde
e do nome que há no batistério:

culpa, orgulho, adultério,
desamor, ciúme, falsidade,
inveja, soberba, critério,
epílogo, mentira, verdade,

ignonímia, ódio, saudade,
abandono, invisibilidade,
discriminação, arrogância,
injúria, mordaça, ignorância.

Há na dor uma altiva certeza:
ninguém escapa da sua presa.

DESAFIO VI

A palavra é química maldita
que te invade pelas narinas,
faz do não, sua breve piada
e parte sem ser anunciada.

O poema é a antítese fugidia
que contém o tudo e o nada,
ingredientes desta armadilha
- a de não saber o que se caça.

Pode haver a palavra camuflada nos estilhaços;
mas não há o poema: nem nos pequenos frascos.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

DESAFIO V

A provável palavra não apareceu
mas enviou esta lágrima na tela
(tremeu a mão e a pena que medra
pois seu castigo é igual ao de Prometeu:

esvaziar-se à sede oceânica de um deus
que não milagreia e nenhum filho ofereceu
para perdoar as longas folhas encharcadas
do suor solto na masmorra das madrugadas).

O poeta finge que não liga, cria neologismos;
já sabe perambular à beira do próprio abismo.

DESAFIO IV

Expor essas vísceras ao vivo,
fazer do teclado uma chaira
e do fonema uma navalha
que toda já se esvai, sem fio,

sugada pelo precipício do poema
(pontiagudo, escuro, surdo, frio)
onde aquela dor que te queima
bate o martelo e ateia o barril.

Ainda que mergulhado nas fuligens do nada,
o poeta se reúne nos corais da provável palavra.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

DESAFIO III

A hesitação partiu sem decreto
e já estou aqui, neste plasma,
a desafiar o todo cru do verso
e a sua ardilosíssima cilada

que fisga o poeta pelo umbigo,
o repuxa rápido ao falso alto
do seu cordão - que é infinito
e o faz o tolo herói do assalto.

Só quero saber de fato o quanto resta
para o vento vir e bater na minha testa.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

METADES - CANTO I

Há um amor em mim tão completo
que na tua ausência sonega
o ar e o torna rarefeito
— e me sufoco pelo avesso.

Há um ódio em mim tão intenso
que cala a fugidia razão
quando me embriago de veneno
e livro o ciúme da prisão.

Não construo cercas... O poema
que persigo desdenha do mapa,
permite pernoites da diferença:
amor e ódio na mesma casa.

Te amo e moro na tua toca.
Te odeio e abro a minha cova.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

ABSTRAÇÕES

Vejo formas de rostos nas paredes descascadas,

nas falhas dos chapiscos de muros incompletos,

nos vestígios furta-cores das demãos do passado

e na sujeira da vida impressa na tinta asséptica.


Ouço vozes e desconheço de onde elas partem

e nem sei se de fato partem; se estas ocas audições

(que se tornam tensas diante destes misteriosos apartes)

são recados imaginados ou gemidos dos meus porões.


Degusto o vento; quero-o, anseio-o a cada intervalo,

seja feito brisa morna que amacia a cama do dia,

seja feito lâmina gélida que deita a saudade e fatia

o abismo em degraus e a morte em desejo adiado.


Exalam invasoras ao redor das minhas narinas

o chorume e a fragrância bandida das esquinas,

uma a uma, olor a olor, nota crua a crua nota

que passam ligeiras, enquanto a alma se transporta.


Pego o verso somente quando o caço feito a um rato

e ele morde, me lança em chamas, não quer ser escravo

e concreto armado de fogo natimorto: algo fracassado

que já partiu no ocaso, mas deixou seu anzol armado.


O poeta tem inexatos treze pedaços soltos na curva:

cinco sentidos, sete pecados e um poema em fuga.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

DESAFIO II

Mais uma vez aqui, diretamente
feito se a tela fosse guardanapo,
feito se o boteco fosse meu quarto
e o cigarro uma amarga aguardente

que posta a coragem e sela o chamado:
conheça esta carne versada e quente
que por você rebaixa todo o passado
e liberta a ânsia do futuro e o mel do presente.

Voa que o poeta aterrissa manso o seu alfabeto alado.
Pousa: faça do meu corpo o seu hangar. O seu pecado.

REBENTOS

Quando já não basta
o enredo acelerado
de bocas famintas,
ávidas da macia carne.

Quando já não há freio
do corpo noutro corpo,
agora um mesmo mar
― gênese do infinito.

Quando não há decibéis
para o silêncio ofegante,
rarefeito, deste límpido cume
de duas mortes satisfeitas.

Quando o mundo ressuscitado
cabe na pausa do beijo mútuo,
penúltimo, levitado, fundido e mordiscado:
almas soldadas em pleno fogo farto.

Quando o nosso gozo se traduz num nosso parto.

domingo, 29 de novembro de 2009

DESAFIO

Escrever diretamente na tela
do Desmaio alguns versos,
juntar as peças estilhaçadas
em pó, em punhal, em navalhas

que me cortam a carne suada,
fria, pálida, só, frêmita e tatuada
pelo nanquim que não encontrou
a sua casa: o poema o derrotou.

O poeta não crê em nenhuma verdade;
exceto a do poema: uma vela na claridade.

ESCONDERIJOS

Cansei de gritar
por ti em mudas janelas.

Cansei de sonhar
a ver-te nua sem querelas.

Cansei de respirar
teu ar pelas tabelas.

Cansei de naufragar
a navegar-te pelas quimeras.

Cansei de imaginar
como seria a nossa guerra:

eu um todo exército pontiagudo
que derrotaria os mil nãos do teu escudo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

SEM TÍTULO

Assim que te vi pela primeira vez
as imagens que guardo e carrego,
os atalhos por onde trafego,
os pelos esmos dessa minha tez
e meus olhos zonzos e perplexos
aprenderam por meio da mudez:
cale o corpo — é da alma o alfabeto;
e do vento o sopro da insensatez.
Naquele dia um estranhamento
voraz tomou posse do pensamento
quando tudo perdeu o sentido
(ilusão de se poder ter o infinito).
Fizeste do belo um escravo
da tua tensa mescla: fada e pecado.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

ENTRE NÓS

Não deixemos desatar os nós de nós

dois; não afrouxemos os laços

erguidos em agridoces bordados

de dores distintas que se fecharam sócias

e ligadas livremente pelos polos

que antes as mantinham afastadas

quando, escurecidas, ignoravam

o mútuo desejo que une os opostos.

Não entreguemos o segredo do cofre

à ânsia nefasta da harpia

camuflada nas penumbras do dia

e na inveja que transborda de seu copo:

guardemos dentro da gente, alados,

este amor que nos fez abalroados.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

NOVOS ARES

Desde quando meus olhos te fitaram
uma mágica neles se instalou
o que era ocaso virou alvorada
e toda a ferida cicatrizou.
Desde quando meus olhos te abordaram
um imenso sol no meu céu se abriu
o que era soluço virou gargalhada
e a tristeza, de mala e cuia, partiu.
Desde quando meus olhos te furtaram
um outro mundo em mim se formou
o que era córrego virou praia
e todo o sal do universo me temperou.
Desde quando teu abraço me envolveu
fiz de mim mesmo o meu próprio apogeu.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

SEM FIM

Esse teu jeito
de mal-amada
desafia meus poros,
todos, um a um,
pêlo a pêlo.

Tua marquinha de praia,
teus seios pequenos,
teu tudo pequeno
se agiganta em mim
feito tua alvura de marfim.

Eu te poria de quatro,
de supetão morderia
tuas bundas, desceria aos pés,
mergulharia às ilhargas. Não pararia.
Te poria do avesso e te chamaria

de puta, de cachorrinha, enrolaria
meus dedos nos teus cabelos (te puxaria)
e, de perto, navegaria na tua língua
até o ar se extinguir em quero assim,
em venha aqui caralho, em goze em mim!

Depois do infinito, te acordaria
em lambidas na tua vagina, profundas,
passaria pela tua divisa, teu ânus
cor-de-rosa, fechadinho, e, frenético,
subiria para sugar todo o teu gozo inédito,

colheria teus urros, sangraria sobre
tuas unhas cravadas no meu dorso,
te chamaria de única, molharia teu lençol
arrumadinho, despertaria os vizinhos
atordoados, debruçados nesta manhã alvissareira.

Te roubaria uns beijos,
reiniciaria o que nunca foi fim;
roubaria outros beijos,
outros escondidos segredos
e te ressuscitaria, de novo, para mim.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

APRENDIZ

Eu sou um eu que quer ser ele mesmo

provar o sabor desse arbítrio

e o que há nele de doce, de infinito,

de amargo, de sonho e pesadelo;

ser este incompleto em erros e acertos

que não inveja a loa do outro, o ouro

a brilhar na retina, nem mergulha no poço

onde mora a fonte do pranto alheio.

Eu sou um eu que quer ser ele mesmo,

pois aqui nenhuma aula se cabula,

nenhuma lição, diurna ou noturna,

deixa de ser ministrada pelo tempo.

A vida que me some e me subtraia

no inexato gume da sua navalha.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Como eu queria
mudar tua palavra
para mel de rainha
liberta e nunca escrava.

Como eu queria
destrancar as defesas
girar na tua poça tesa
beber garapa de poesia.

Como eu queria
as chaves do teu coração
abri-lo à ardorosa emoção
deste amor que me renuncia.

Como eu queria
na paz nossa moradia.

Ah, como eu queria!

SEM NOME

Como se chama esta fúria que emana
que emerge meio santa meio cigana
que aumenta as garras, o calor e a força
quando me adoço com o mel da tua boca

e alago todo o teu recato, toda a tua poça
onde nos transbordamos em longos gemidos
infinitos? Que obriga que a gente se contorça
nesta cama — território feito fosse o paraíso?

Como se chama esta erosão repentina
que abre tua fenda outrora escondida
que elimina tenente os nãos do vocabulário
quando me visto com o teu suor almiscarado

e trafego éter sobre teu corpo, teus cálices
onde nos derretemos em longas soldagens
ardentes? Que decreta o fim das miragens
neste antideserto — reino dos mil oásis?

Como se chama esta coisa sem nome
esta dor às avessas que nos consome?

sábado, 1 de agosto de 2009

LEVA

Leva por favor esse seu “S” logo
leva de vez enquanto eu choro
a vida que se esvai pelos poros
lentamente: assim eu me devoro

na imensidão do vazio que ocupa
a sua ausência ampla que desnuda
o peito, esta adaga forjada na tortura
de vê-la na luz, no breu e na penumbra.

Leva tudo. Leva também o nosso amor.
Cuida dele que eu cuido da minha dor.

domingo, 26 de julho de 2009

HIATO

Todos têm os seus mistérios
E segredos guardados no peito

Todos têm pelo menos um cadeado
Que só é aberto nos confins da solidão

Todos têm vários desejos escondidos
Censurados no crivo da Dona Moral

Todos têm labirintos sem mapa
Onde a alma se perde aflita

Nunca pretendi decifrar ou entender
Tua avalanche de seguidos arrepios

Que sempre alvejou meus sentidos
Desde quando te avisto ao longe

E assim que recebo o teu abraço macio
O tempo pára feito uma lívida morte

Que permite a vida do eterno instante
Em que o teu coração bate por nós dois

E nascemos num só corpo teimoso e proibido
Neste sonho feito de segundos de infinito.

FELICIDADE

O que é a felicidade?
Uma banda que se eleva
ao passo que a outra metade
dentro de ti toda trafega

e inteira, cheia, desbrava
os dois lados da moeda
quando a coroa vira cara
e a cara um Pierrot às avessas?

O que é a felicidade?
Antídoto ou paliativo?
Mentira ou verdade?
Alma ou espírito

efêmero feito cigano
sobre nó e encruzilhada
que beija o riso e o pranto
nas tranças da madrugada?

O que é a felicidade?
Algo que queima e arde?
Algo que alivia e abre
as pálpebras da tarde

escarlate? Obra de arte
que esconde uma parte
de cruel perversidade
ou é puro o seu alarde?

O que é a felicidade?
É a razão que toda se evade
por um vento que te invade?
O que é a felicidade?

quinta-feira, 23 de julho de 2009

SIMULTÂNEOS

Enquanto escrevo, ardo — condenado à fogueira pelo poema e todo o seu clero.
Enquanto ardo, atuo — mergulhado num oceano de cinzas maior do que o deserto.
Enquanto atuo, escrevo — desafiado por esta falta de fim que nos mantêm vivos
nesta troca acordada na solidão: ele se alimenta do meu cansaço e eu do seu infinito.

Enquanto amo, sangro — ferido pelos mil estilhaços poderosíssimos do ciúme.
Enquanto sangro, sofro — tingido por uma ampla camada do seu grosso betume.
Enquanto sofro, amo — extrema-ungido sem palavras (esta sua ausência afiada
que me enterra e remete ao vazio a alma aflita que clama por você e mais nada).

quinta-feira, 16 de julho de 2009

SEM NOME

Não existe palavra que meça
a fundura do poço desta chaga
nem mesmo um grau superlativo
absoluto sintético, nenhum estilo,

nada de que se aproxime a gramática
e suas antipáticas e inevitáveis assepsias:
a palavra trepa; é o chorume da poesia,
mas não traduz o âmbar dessas lágrimas.

Não existe palavra que faça
o retrato falado desta carrasca
(nada mais que o nada se revelaria
— não há imagem na fotografia.)

torturadora, dona, devastador ingresso;
expõe num desfile a nudez das minhas dores
quando por meio de cada gemido confesso
o cinza dos dias: só você reina no reino das cores.

O poeta procura a palavra, esta que não ecoa ou convoca
a insensatez e o azeviche do ar que a sua ausência provoca.

domingo, 12 de julho de 2009

SEM VOCÊ

Sem você por perto o tempo acorda
e invade senhorio os pedaços do dia;
transforma o que é segundo numa harpia
que me assombra, me acua e me devora

bicada a bicada, poro a poro, veia a veia
quando o corpo é lentamente carcomido
feito o cadáver pelos vermes escurecidos
ou a alma que no alto do inferno corcoveia.

Sem você ao alcance caio na teia da madrugada
que muitos compreendem luz, festiva e dilacerada
mas para a pena que usucarpe nos meus dedos roídos
representa a duríssima resposta: o poema é do infinito

e locador da seara que não se veste em nenhuma medida
pois é irmão maior do presente, vítima do mesmo apuro
de ter a sua inexistência negada pelo homem, esta teimosia
que ignora a sua órbita ubíqua entre o passado e o futuro.

Sem você nas cercanias um amplo anti-milagre é operado
feito se eu esfregasse no deserto uma lâmpada ao contrário
e dela surgisse o olor do enxofre e depois o próprio diabo
que realiza os meus pesadelos e assassina o que foi sonhado

nas noites em que seus braços mágicos inteiros me acoplavam
e cada pelo, um punhal que se acomodava nesta cela sem grades
onde éramos tão um e tão leves, tão entrelaçados e tão afeitos
e tudo o que um deu para o outro foi puro amor (quase perfeito).

Sem você como referência fico perdido, desconheço o sul, o norte
e a solidão sussurra meu último verso: a vida é pior do que a morte.

terça-feira, 7 de julho de 2009

MUDANÇA DE ESTAÇÃO

Tuas mãos dulcíssimas hospedam
a maciez inconstante e tenra das nuvens:
ora fogos ora brasas ora colas ora éteres
ora cegas espátulas ora afiados gumes.

Tuas mãos generosas oferecem
uma longa viagem para o paraíso:
são donas do meu corpo, do meu juízo
e das ondas que me sobem e que me descem.

Tuas mãos completas promulgam
a paz, extinguem as armas e as guerras:
assinam em segredo o decreto que encerra
todas as dores que os homens divulgam.

Tuas mãos não são mãos apenas e sim aladas esferas
que me retiram do inverno e me pousam na primavera.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

AGONIA

Vai bem longe o dia
do tudo que existia.

Vai bem morna a tarde
e só me resta uma parte.

Vai bem breu a noite:
tua ausência, meu açoite.

VISGO

De nada adianta a velha promessa,
a voz falsamente firme e precisa,
o martelo batido feito armadilha,
a negação dessa dor que me engessa,

se tudo que faço sem você se torna desfeito
e o seu “S” ainda mora no cordão do meu peito.

CONVERSA DE VERSO

Sou o verso. Um ábaco cujas peças
são portas ora fechadas ora abertas,
signos soltos, promíscuos e libertinos,
espaço onde habitam os limites infinitos.

Trafego na vertente doentia do poeta,
faço as cartas, cacifo, distribuo o jogo,
arruíno com o pobre tolo pouco a pouco:
acendo o refletor e depois cobro a vela.

Venho da improvável e diabólica interseção
entre o egocentrismo absoluto e a ingratidão
— o umbigo que somente enxerga o que é seu
e as costas hasteadas feito bandeiras de adeus.

Não há remorso, arrependimento ou piedade
nas minhas hostes de falsíssimas promessas,
pois blefo com o poeta e juro uma verdade
mentirosa, mas é esta mesma que o interessa.

Sou o pastor da ilusão, o grão-mestre da miragem.
Servir para tudo e em todos é a minha camuflagem.
Brinco com as coisas mais perigosas dessa vida:
vaidade, orgulho, ego, frustração, estima e cobiça.

Guardo as mil chaves de um vasto paiol de maquiagens;
transformo perfídia em palmas e abóboras em carruagens.
Doso com precisão os pés do voo e no seu lugar mais alto
solto as máscaras sem ar e anuncio de supetão o assalto.

Ajo com o poeta da mesma forma que o álcool no alcoolista:
sorrateiro, despretensiosamente pretensioso, cruel e imperialista.
Apresento sabores inéditos e aparento ser um prazer submisso
enquanto a arrogância constrói as cercas do seu mundo finito.

Sou o verso. Porta-voz e estandarte daquilo que não existe:
vilíssimo veneno que não mata aquele que me entende livre.

domingo, 28 de junho de 2009

ENTRELINHAS

Enquanto eu te beijava
(era todo teu o universo)
um mel de mim jorrava

inexistia o errado e o certo
só a tua língua que me guiava
aos céus: esplendor de azul aberto.

Enquanto eu te ateava
(era todo teu o tudo)
uma solda se soldava

inexistia o relativo e o absoluto
só o teu gozo que me sonegava
o tempo: fim do passado e do futuro.

Enquanto eu te reanimava
(era todo teu o líquido)
um outro ser rebentava

inexistia o início e o epílogo
só o teu riso que me congelava
de suor: doce e lívido armistício.

Enquanto eu te habitava
nem o nada mais importava.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

AAB-E-HAYAAT

A vida que deixei de saborear já não me basta;
nela nunca houve apelos de linha de chegada
tampouco a nefasta ilusão da falácia que sustenta
ser mel e finita o fel e a dízima periódica do poema.

A vida que deixei de enxergar já não me aponta
o frescor da manhã e a adstringência das brisas
que renovavam a pesada maquiagem bisonha
(paliativo ungüento contra esta dor que não termina).

A vida que deixei de tatear já não me incendeia
os pelos deitados nem enruga mais o mamilo
adormecido que outrora se vestia intumescido
mas que agora somente a saudade manuseia.

A vida que deixei de perfumar já não me entorpece
as narinas quando avisto de supetão o jasmineiro
que impregnava exuberante o meu corpo inteiro
e catapultava obstinado o seu olor feito uma catequese.

A vida que deixei de escutar já não me desconcerta
a alma paralisada que estranha aquela sublimação
de sons, tons e tocatas quando todo o peso sai do chão
e cria poderoso o vento que descerra a alfaia encoberta.

A vida dessas vidas que deixei lá fora no sereno amontoada
respira no aparelho que ainda sonha e quer e ruge e te aguarda.

Marlos Degani

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Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Marlos Degani, Nova Iguaçu/RJ, é jornalista. Lançou o seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2006 e que conta com a apresentação do poeta Ivan Junqueira, imortal da Academia Brasileira de Letras, falecido em 2014. Em setembro/14 lançou o segundo volume de poemas chamado INTERNADO, também pelo formato e-book, disponível nas melhores livrarias virtuais do planeta. Em 2021, pela Editora Patuá, lançou o seu terceiro volume, chamado UNIPLURAL. Participa como poeta convidado da edição número 104 da Revista Brasileira, editada pela Academia Brasileira de Letras, lançada em janeiro/21, ao lado de grandes nomes da literatura brasileira.