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terça-feira, 15 de julho de 2014

ENFIM





                                   Vai tudo em mim, enfim, se despedindo

                                            Ivan Junqueira in Vai Tudo em Mim

 

Tudo em mim vai ficando sem graça

(igualmente com o que me rodeia).

Natal? Ano Novo? Aniversário?

Tudo, enfim, perdeu a existência,

perdeu o sentido, perdeu o ar

e o que me resta é o poema

oculto e o verso de fumaça

− que viram pó quando o sol rebenta.

E tudo em mim vai se despedindo:

meus dentes, minha mente, meu sorriso

− tudo roda velozmente nos dias,

nos anos que se passaram, no rio

desta vida que caminha sem rota,

das horas que se vão e que não voltam.
 
 

 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

QUANDO FORES ME AMAR

     Sobre texto de Zack Magiezi



Quando fores me amar, faças nua.
Tires os diplomas, dês tua alma,
tires os cartões, as chaves do carro...
Tires tudo, pois não serás mais tua,
mas deste mundo que te emolduras
toda na silhueta do meu corpo,
dois em um: o pintor e a pintura.
Fundidos. Soldados. Ferro e fogo
até ao ponto onde só nos reste
a humanidade e uma prece
para ver se Deus faça infinita
esta fogueira que nos ilumina.
Nem mesmo a manhã brilha mais lívida
do que nossas línguas numa só língua.




MEL & FEL



Tua boca é abismo doce,
suicídio almiscarado,
um néctar qual fosse
a sobremesa do pecado

sorvido por deus e pelo diabo.

Tua ausência é poderosa ruína,
tortura aprisionada,
um breu que veloz assassina
o sol e irriga a pele orvalhada,

que é só saudade: esta navalha.


segunda-feira, 7 de julho de 2014

SIM E NÃO SEI


Já troquei
e destroquei
 o meu olhar
do teu alvo
e este foco
− o de agora
que as minhas
dilatadas retinas
mil vezes fotografam
seja na lembrança
ou no poema pirlimpimpim
seja na tua carne exata...
Tudo que há em mim
todo te despe: e me desaba.


sexta-feira, 13 de junho de 2014

SEM PIEDADE



Agora vou versar aos miseráveis

que se prendem no cipó do umbigo

às sementes mal plantadas que vagam

restritas às cercas do egoísmo

e às luzes opacas dos tapinhas

camaradas dos seus rasos comparsas

nas mesas bêbadas dos botequins

no falso brilhante da madrugada.

Agora vou versar aos idiotas

que julgam o mundo e as pessoas

e que tão somente o que importa

é o que de dentro deles ressoa

numa teimosa e cruel tortura:

a dor do não-ser. Nem coisa nenhuma.



quarta-feira, 11 de junho de 2014

OUTRA VEZ O VENTO


Foi este vento da manhã que trouxe
o perfume gelado do teu corpo,
um que me leva de volta ao ontem
e que me prende no teu horizonte
de onomatopeias delirantes
antes do depois e depois do antes;
foi este vento, pois tem teu sorriso
como emblema, que pôs alegria
na dor preta e branca dos meus dias
nesta escravidão que me domina.
Foi do vento o sabor da saliva
da tua boca (mel e ambrosia),
onde a minha alma ressuscita
e as flores nascem intumescidas.



sábado, 7 de junho de 2014

TATUAGENS




Morar no teu pensamento
é feito colher uma flor
num deserto sem fim.
Não importa se sim
não importa se não...
Este amor aqui ultrapassa
as respostas do homem:
e só há sins no meu horizonte,
porque, contigo, todos os ontens
são eternos. E gritam o teu nome.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

FOCO




Não vejo mais as ruas, os jardins,
nem o mar e tampouco as estrelas.
Não cheiro mais do olor das esquinas
e nas auroras não mato a sede
dos copos teimosos da madrugada;
o céu escureceu as minhas lentes
e eu mesmo me fiz entorpecente
no pó congelante da tua falta.
Assim, versos em versos rabiscados,
hachuro as maquetes desses dias,
duma fragílima engenharia
que desmorona quando o sol nasce.
Teu corpo é a única imagem
que persigo. Em todos os lugares.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

MANHÃS DE OUTONO




São belas essas manhãs de outono
e o furta-cor de brancos do céu
prata, oliva e azul aberto
espalhados entre os horizontes...
Tem o vento: liso e temperado
que colhe os sonhos do pensamento
e traz o perfume almiscarado
do teu corpo no qual me alimento
desde a primeira fresta do dia
ao instante de ver-te consumida
na cama que fizemos de esquife
e de onde, salgada, ressuscitas
− em tons do teu outono infinito
quando a morte nasce num gemido.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

NADA



Se já não bastasse esta saudade

ácida (a irromper as ilhargas,

uma, de escápula a escápula,

que reduz tempos na tua imagem

de sorriso generoso, mais doce

do que o mel mais doce desta Terra

e que, língua em língua, reverbera

meus ais tremidos pelos horizontes,

feito se meus desejos estivessem,

todos, ajoelhados numa prece

suada, misto de muito com pouco,

que os deuses fazem ouvidos moucos),

ainda preciso seguir... Tristonho,

pois não me deixam ter-te. Nem em sonho.
 
 
 

sábado, 24 de maio de 2014

ESPERA



Você pediu uma poesia

daquelas de outrora,

quando a paixão ardia

nos flancos insanos da aurora;

 

uma, talvez, jocosa,

repleta de ternura,

na paz fabulosa

da mútua mordedura.

 

Não faço mais versos

desnudos ou acabados,

não teço a harmonia

do que, um dia, foi intensa alegria.

 

Mas danço sua canção

no compasso de quem espera,

como sangue ao coração,

o inverno voltar a sorrir primavera.
 
 
 
 


 

domingo, 11 de maio de 2014

ORVALHO




Jamais pretendi te ensinar nada

e nem mostrar alguma novidade,

pois o paraíso, em ti, faz casa,

desde este teu olhar que me fala

fundo por todos meus poros, às curvas

peras e macias que te circundam.

Quero sim, e muito, e tão somente

irrigar, no teu jardim, a semente

escondida que anseia ser vida

em flor – linda – e provar do orvalho

úmido que te fará consumida,

plena, lambida e extenuada.

Quero sim desenhar na tua pele

um mar salgado de suor e febre.
 
 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

MIRAGEM




Ainda bem que nunca esperei

salvação em nada e muito menos

nos versos fracassados que escrevo

na calada da noite e nos becos

escuros deste quarto inquieto

de onde as paredes reverberam

meus ruidosos silêncios secretos

feitos se fossem anzóis que me pescam

mesmo quando tudo o que me resta

é a empreitada sem recompensa

desses falsos quilates do poema

e do ocre amplo do seu deserto

vem um vento forte pela janela

mas não seca o mar na minha testa.
 
 
 

quinta-feira, 10 de abril de 2014

FEBRE



Enrolado em mim mesmo

te abraço pelos travesseiros...

Dos lençóis fiz tua boca

e da saudade minha navilouca.
 
 

VELAS



Você é a minha saída, a cachaça
de cabeça necessária da manhã
da tarde, da noite, da madrugada
esta potente gasolina que assanha

as engrenagens inquietas do meu corpo
e desmaio de cabeça quando o sangue todo
enche o meu pontiagudo e viril instrumento
que afiado eternizou seus ais naquele momento:

onde eu era um mastro e você era um vento.


sábado, 5 de abril de 2014

SINS




Foi no teu poema trinta e dois

− este que eu nunca escreveria

e que, fato, e muito, gostaria,

mas tudo que tens, eu jamais teria:

 

“Como Assim?” É assim que começas,

do começo deste balé de versos,

do calafrio quente, às avessas,

do último poro da minha pele

 

ao tutano dos ossos da costela,

entretanto, não há o que traduza

este ar rarefeito, esta nuvem,

um outro pedaço do universo

 

enquanto eu (ou) via, à deriva,

teu Lago dos Cisnes da poesia.
 
 
 

Marlos Degani

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Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brazil
Marlos Degani, Nova Iguaçu/RJ, é jornalista. Lançou o seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2006 e que conta com a apresentação do poeta Ivan Junqueira, imortal da Academia Brasileira de Letras, falecido em 2014. Em setembro/14 lançou o segundo volume de poemas chamado INTERNADO, também pelo formato e-book, disponível nas melhores livrarias virtuais do planeta. Em 2021, pela Editora Patuá, lançou o seu terceiro volume, chamado UNIPLURAL. Participa como poeta convidado da edição número 104 da Revista Brasileira, editada pela Academia Brasileira de Letras, lançada em janeiro/21, ao lado de grandes nomes da literatura brasileira.